quinta-feira, 7 de abril de 2011

Apresentação de Washington Irving

                                                          Rip Van Winkle
Washington Irving
Adaptação de Paulo Sérgio de Vasconcello

Quem  quer  que  tenha  subido  pelo  rio  Hudson  deve lembrar-se das montanhas Kaatskill, que se avistam ao longe. Cada mudança  de  estação  e  de  tempo  e  cada  hora  do  dia  provocam alguma  mudança  nas  cores  e  nos  contornos  mágicos  dessas montanhas.  Todas  as  boas  esposas  da  região  as  tomam  como barômetros, pois, de acordo com sua aparência, conseguem prever o tempo.
 Ao pé dessas belas montanhas, o viajante pode avistar fumaça se erguendo lentamente  de  uma aldeia cujos telhados  brilham  por entre  as  árvores. É  uma  aldeia muito  antiga,  que  foi  fundada  por algum colonizador holandês.
 Nessa aldeia e em uma dessas casas  (que, a bem da verdade, eram muito antigas e castigadas pelo mau tempo), vivia, há muitos anos, quando os Estados Unidos ainda eram uma província da Grã-Bretanha, um homem simples e bom chamado Rip Van Winkle.
 Era um vizinho exemplar e  um marido  obediente, completamente dominado pela mulher. Certamente devia a essa última circunstância  a  brandura  de  alma  que  lhe  conquistava  uma popularidade geral, pois são mais aptos a serem dóceis e conciliadores fora, esses homens que estão sob a disciplina de uma víbora dentro de casa.
 Rip  Van  Winkle  era  o  grande  favorito  entre  todas  as  boas esposas da aldeia; as crianças também gritavam de alegria sempre que  ele  se  aproximava.  Assistia  a  seus  jogos,  fabricava  seus brinquedos, ensinava-lhes a soltar pipa e atirar bolinhas de gude e lhes contava longas histórias de fantasmas, bruxas e índios. Aonde quer que ele fosse, era cercado por um bando deles, pendurando-se nas  suas  roupas,  subindo às  suas  costas e lhe  pregando mil  peças
impunemente. Nem um cachorro sequer, em toda a redondeza, latia para ele.
 O  grande  defeito  de  caráter  de  Rip  era  uma  insuperável aversão  a  qualquer  tipo  de  trabalho  útil. Não era  falta  de assiduidade  ou  perseverança,  pois  ele  seria  capaz  de  sentar  numa rocha úmida, com uma vara, e ficar pescando o dia todo, sem uma queixa, mesmo  que  sua isca  não  fosse mordida  nem  uma  só  vez.
 Carregaria ao ombro sua espingarda por horas seguidas, caminhando  por  bosques  e  pântanos,  subindo  e  descendo morros, para atirar em alguns poucos esquilos ou pombas selvagens. Jamais
se recusaria a ajudar um vizinho, mesmo nas tarefas mais duras. As mulheres  da  aldeia, também, tinham  o  costume  de  recorrer  a  ele para  pequenos  serviços  que  seus  maridos  menos  prestativos  não fariam  por  elas.  Numa  palavra,  Rip  estava  sempre  pronto  para
cuidar  dos  negócios  de  quem  quer  que  fosse,  exceto  dos  dele próprio. Mas cumprir os deveres para com a família e manter sua fazenda em ordem, ele achava impossível.
 De fato,  dizia  que  não  adiantava  nada  trabalhar  em  sua fazenda: era o pior pedaço de terra de toda a região. Tudo ali dava errado  e  daria  errado  apesar  dele.  Suas  cercas  estavam  sempre
caindo  aos  pedaços;  sua  vaca  sempre  se  perdia  ou  ia  parar  na plantação de couve. A erva-daninha certamente crescia mais rápido em  suas  terras  do  que  em  nenhum  outro  lugar.  A  chuva  fazia questão  de  cair  exatamente  quando  ele tinha  algum trabalho  para fazer  ao  ar  livre.  Assim,  a  propriedade  que  herdara  do  pai, diminuindo até ficar reduzida a pouco mais que um simples terreno com milho e batatas, era a  fazenda em piores condições de toda a
redondeza.
 Seus  filhos também andavam maltrapilhos e  selvagens como se não tivessem pais. Seu filho Rip, um moleque igualzinho a ele, fazia prever que ia herdar-lhe os hábitos, junto com as suas roupas velhas. Viam-no geralmente correndo como um potro atrás da mãe,
vestido  com  um  velho  par  de  calças  do  pai,  que  ele  tinha  muita dificuldade em segurar com uma mão.
 Rip Van Winkle,  porém, era  um  desses  felizes mortais bemhumorados,  sempre  de  bem  com  a  vida,  comendo  pão  branco  ou preto:  o  que  se  pudesse  conseguir  com  menor  esforço  ou
dificuldade. Preferia definhar com um centavo a trabalhar por uma libra. Se  deixado a  si mesmo, ele teria  passado a  vida a assobiar, com  perfeita  satisfação;  mas  sua  mulher  vivia  resmungando  nos seus ouvidos sobre sua preguiça, sua negligência e a ruína a que ele
estava levando sua família. De manhã, à tarde e à noite, sua língua estava em ação sem trégua, reclamando de tudo o que ele dizia ou fazia.  Rip  só  tinha  um  modo  de  responder:  encolhia  os  ombros, balançava  a  cabeça,  erguia  os  olhos,  mas  não  dizia  nada.  Isso,
porém, provocava uma nova enxurrada de queixas e só lhe restava, então, ir para fora de casa — o único lugar que realmente pertence a um marido dominado pela esposa.
 O  único  a tomar  partido  de Rip  em  seu lar  era  seu  cachorro Wolf,  tão  tiranizado  pela  Senhora  Van Winkle  quanto  seu  dono, pois aquela os via como companheiros de preguiça e olhava torto para  Wolf  como  se  ele  fosse  a  causa  das  perambulagens freqüentes  do 
marido.  A  verdade  é  que  Wolf  era,  sob  todos  os aspectos,  um  cachorro  digno;  era  corajoso —  mas  que  coragem podia enfrentar os constantes e esmagadores ataques de uma língua de mulher? Assim que Wolf entrava na casa, baixava a crista, com
o  rabo  entre  as  pernas,  olhando  atentamente  para  a  senhora  Van Winkle. Ao  primeiro  sacudir  de  um  cabo  de  vassoura  ou  de  uma concha, saía correndo para a porta, latindo.
 Foi ficando pior para Rip Van Winkle com o passar dos anos de  casamento. Um temperamento  azedo jamais  se  abranda  com  o tempo, e uma língua afiada é o único instrumento cortante que se torna  mais  agudo  com  o  uso  constante.  Por  muito  tempo,  ele costumava consolar-se, ao  ser expulso  de casa,  freqüentando  uma espécie  de  clube  dos  sábios,  filósofos  e  outros  personagens preguiçosos da aldeia. Suas sessões ocorriam num banco na frente
de  uma  pequena  pousada.  Ali  costumavam  se  sentar  à  sombra, durante  um  longo  e preguiçoso  dia  de  verão,  conversando distraidamente  sobre  mexericos  da  aldeia  ou  contando  histórias intermináveis  e  tediosas  sobre  coisa  nenhuma.  Se  lhes  caía  nas
mãos algum jornal deixado por um viajante de passagem, era lido arrastadamente  por  Derrick  Van  Bummel,  o  mestre-escola,  um homenzinho  vivo  e  instruído,  que  não  se  deixava  assustar  pela palavra  mais  gigantesca  do  dicionário.  Como  deliberavam sabiamente  sobre  acontecimentos  públicos  alguns  meses  depois que eles tinham ocorrido!
 As  opiniões  dessa  liga  eram  totalmente  controladas  por Nicholas Vedder, um patriarca da aldeia e dono da pousada, a cuja porta ele permanecia sentado de manhã até a noite, só se movendo para evitar  o  sol e continuar  sob a  sombra  de  uma  grande árvore.
 Assim,  os  vizinhos  podiam  saber  que  horas  eram  a  partir  de  seus movimentos,  de  uma  forma  tão  precisa  quanto  consultando  um relógio de sol. É verdade que raramente escutavam-no a falar, mas fumava  seu  cachimbo  sem  parar.  Seus  partidários,  porém, compreendiam-no  perfeitamente  o  que  ia  pela  sua  cabeça,  de acordo com o modo como ele fumava.
 Mas até mesmo desse refúgio o desafortunado Rip foi por fim expulso  pela  megera  da  sua  esposa,  que  irrompeu  de  repente  na tranqüilidade  da  assembléia  e  chamou todos  os  seus membros  de inúteis.  Nem  aquela  venerável  personagem,  o  próprio  Nicholas
Vedder, foi poupado da língua atrevida dessa terrível víbora, que o acusava de encorajar os hábitos preguiçosos do marido.
 O  pobre  Rip  se  viu  por  fim  quase  reduzido  ao  desespero;  e sua  única  alternativa  para  escapar  do  trabalho  da  fazenda  e  da gritaria  da  mulher  era  pegar  sua  espingarda  e  perambular  pelas florestas. Aqui ele algumas vezes se sentava ao pé de uma árvore e
dividia o conteúdo de sua bolsa com Wolf, com quem simpatizava como  um  companheiro  de  sofrimento.  “Pobre Wolf”,  dizia,  “sua dona dá a você uma vida de cão, mas não se preocupe, meu amigo: enquanto  eu  viver,  você  nunca  sentirá  falta  de  um  companheiro para  ficar  a  seu lado!” Wolf  abanava  o  rabo,  olhava  atentamente para  o  rosto  do  seu  dono  e,  se  cães  podem  sentir  piedade,  eu acredito realmente que ele demonstrava os mesmos sentimentos do
dono com todo seu coração.
 Numa dessas longas andanças, num belo dia de outono, tinha escalado,  sem  dar  por  isso,  uma  das  partes  mais  altas  das montanhas Kaatskill. Estava  entretido  em  seu  esporte  favorito —
caçar  esquilos,  e  a  solidão  silenciosa  das  rochas  tinha  ecoado repetidamente  os  estampidos  de  sua  espingarda.  Ofegante  e cansado,  lançou-se  sobre  uma  colina  verde,  à  beira  de  um precipício. De uma abertura entre as árvores ele podia avistar toda
a  região  mais  abaixo,  a  grande  distância.  Viu  o  altivo  Hudson, longe, longe, movendo-se em seu curso silencioso mas majestoso.
 Do outro lado, avistou um vale profundo, selvagem, solitário e  eriçado;  o  fundo  estava  repleto  de  pedaços  de  rochas  e escassamente  iluminado  pelos  reflexos  do  sol  poente.  Por  algum
tempo Rip permaneceu ali, deitado, meditando sobre aquela cena.
 A  noite  estava  avançando  pouco  a  pouco.  As  montanhas começavam a lançar suas sombras azuis sobre os vales. Ele viu que escureceria  muito  antes  de  poder  chegar  à  aldeia  e  suspirou profundamente ao pensar nas ameaças da Senhora Van Winkle que
ele teria de enfrentar.
A  ponto  de  descer,  ouviu  uma  voz  chamando-o:  “Rip  Van Winkle!  Rip  Van Winkle!”  Olhou  ao  redor,  mas  não   conseguiu ver  nada  além  de  um  corvo  num  vôo  solitário  através  da montanha. Pensou que sua imaginação o enganara e se preparou de novo  para  descer,  quando  ouviu  o  mesmo  grito  soar  através  do calmo ar da noite: “Rip Van Winkle! Rip Van Winkle!” No mesmo momento,  Wolf  eriçou  os  pêlos  das  costas  e,  dando  um  fraco rosnado, refugiou-se bem junto do dono, olhando assustado para o vale. Rip agora sentia uma vaga apreensão. Olhou ansiosamente na mesma  direção  e  percebeu  uma  figura  estranha  escalando vagarosamente as  rochas  e  curvada  sob o  peso  de  algo  que carregava  às  costas.  Ele  ficou  surpreso  ao  ver  um  ser  humano naquele lugar solitário e deserto, mas julgando que era algum dos vizinhos precisando de sua ajuda, correu a oferecê-la.
 Ao  chegar  mais  perto,  ficou  ainda  mais  espantado  com  a singularidade  da  aparência  do  estranho.  Era  um  velho  baixo,  de fartos  cabelos  eriçados  e  barba  grisalha.  Vestia-se  à  antiga moda holandesa,  com  uma  jaqueta  e  vários  calções.  Carregava  aos
ombros  um barril,  que  parecia cheio  de licor, e  fazia  sinais a Rip para  que  ele  se  aproximasse  e  ajudasse  com  o  fardo.  Embora ressabiado  e  desconfiado  dessa  nova  amizade, Rip  o  fez  com  sua presteza habitual. Ajudando-se um ao outro, subiram um barranco,
que  parecia  o  leito  seco  de  uma  corrente  da  montanha.  Quando escalavam, Rip ouviu um barulho como que de um trovão distante.
 Parou  por  um momento, mas  supondo  que  era  um  desses trovões que anunciam uma pancada de água, prosseguiu. Chegaram a uma cavidade  que  parecia  um  pequeno  anfiteatro,  cercado  por precipícios e árvores. Durante todo o tempo,  Rip e seu companheiro  tinham  subido  a  montanha  em  silêncio.  Embora o primeiro  se  perguntasse admirado  qual a  razão  de  se carregar  um barril  de  licor  montanha  acima,  havia  algo estranho  e incompreensível no desconhecido que inspirava medo e impedia a intimidade da conversa.
 Ao  entrarem  no  anfiteatro,  apareceram  outros  motivos  de espanto. No centro havia um grupo de homens esquisitos jogando um antigo jogo de bola holandês. Vestiam, todos, roupas estranhas.
 Seus rostos, também, eram especiais. Um tinha uma grande barba, rosto  cheio  e  olhinhos  de  porco.  A  face  de  um  outro  parecia consistir inteiramente num nariz, encimado por um chapéu branco com  uma  pena  vermelha  de  galo.  Todos tinham  barba,  de  vários formatos e cores. Havia um que parecia ser o líder. Era um velho forte; tinha  um  chapéu  com  penas, meias  vermelhas  e  sapatos  de salto alto, com rosas. O grupo em seu conjunto lembrava a Rip as
figuras  de  uma  velha  pintura  flamenga,  que  ele  vira  na  sala  de Dominic  Van  Shaick,  o  vigário  da  aldeia, trazida  da  Holanda  no tempo da colonização.
 O que parecia particularmente estranho a Rip era que, embora aquelas pessoas estivessem se divertindo, mantinham no rosto uma expressão  das  mais  sérias,  o  mais  misterioso  silêncio:  era  a diversão  mais  melancólica  que  ele  já  tinha  testemunhado.  Nada interrompia  o  silêncio  da  cena,  exceto  o  ruído  das  bolas,  que,  ao rolar, ecoavam através das montanhas como barulho de trovão.
 Quando  Rip  e  seu  companheiro  se  aproximaram,  eles  de repente  desistiram  do  seu  jogo  e  o  encararam  com  um  olhar  tão fixo  de  estátua  e  com  rostos  tão  estranhos  e  sem  vida,  que  seu coração  disparou  e  seus  joelhos  se  chocaram  entre  si.  Seu companheiro esvaziava agora o conteúdo do barril em garrafões e fazia  sinais  para  que ele  servisse  o  grupo. Obedeceu com medo e tremendo; eles beberam o licor em profundo silêncio e retornaram
ao jogo.
 Pouco a pouco o medo e a apreensão de Rip diminuíram. Até se aventurou, quando nenhum olhar estava  fixado nele, a saborear o licor,  que tinha  o  gosto  das  melhores  bebidas  holandesas.   Era, por  natureza,  uma  alma  sedenta  e logo  se  viu tentado  a  repetir  a dose. Um  gole leva a  outro, e ele  repetiu  suas  visitas ao  garrafão tantas  vezes  que,  por  fim,  seus  sentidos  se  enfraqueceram,  seus olhos  se  turvaram,  sua  cabeça  foi  gradualmente  tombando  e  ele caiu num sono profundo.
 Ao acordar, descobriu-se na colina verde de onde tinha visto pela primeira vez o velho que vinha subindo a montanha. Esfregou os  olhos  —  era  uma  esplêndida  manhã  ensolarada.  Pássaros
saltitavam  e  cantavam  por  entre  a  mata.  “Com  certeza”,  pensou Rip,  “não  devo  ter dormido  aqui  a  noite  toda”.  Recordou  o  que acontecera antes de adormecer. O homem estranho com um barril de licor, o barranco, o retiro selvagem entre as rochas, o triste jogo de  bola,  o  garrafão.  “Oh!,  aquele  garrafão!  Maldito  garrafão!”, pensou  Rip,  “quantas  desculpas  eu  devo  pedir  à  Senhora  Van Winkle!”
 Procurou  por  sua  arma, mas  em  seu lugar  encontrou  apenas uma  espingarda toda  corroída de  ferrugem.  Suspeitava  agora  de que os homens da montanha tinham lhe pregado uma peça: depois de  o  embebedar  com  o  licor,  tinham  roubado  sua  espingarda.
 Também Wolf tinha desaparecido, mas bem podia ter corrido atrás de  um  esquilo  ou  de  uma  perdiz.  Assobiou  chamando-o  e  gritou seu nome, mas tudo em vão; os ecos repetiam seu assobio e grito, mas não se viu nenhum cachorro.
 Decidiu  revisitar  a  cena  do  dia  anterior  e,  se  encontrasse alguém do jogo, pedir seu  cachorro e sua espingarda. Ao se erguer, notou  que  suas  juntas  estavam  rígidas  e  mais  fracas  do  que  o normal. “Essas camas de montanha não são comigo”, pensou Rip, “e  se  eu  ficar  com  reumatismo, terei  de  agüentar  a  Senhora  Van Winkle  por  um  bom tempo”. Com alguma  dificuldade,  desceu ao barranco  onde tinha  estado  com  o  companheiro  na  véspera. Mas,
para  seu  espanto,  havia  agora  ali  uma  corrente  de  água  da montanha, saltando de rocha a rocha.
 Por  fim,  chegou  ao  que  era  o  anfiteatro, mas  não  encontrou nenhum  sinal da escavação que   havia antes. As rochas apresentavam uma parede alta, intransponível, sobre a qual corriam as  águas,  rodeadas  pelas  sombras  de  uma  floresta. Aqui,  então,  o pobre Rip  foi  obrigado a parar. De  novo assobiou e chamou  pelo cão,  inutilmente.  Que  deveria  fazer?  A  manhã  já  ia  alta,  e  Rip, sentindo  falta  do  café  da  manhã,  sentia-se  faminto.  Lamentava deixar  seu cachorro  e  sua  espingarda,  temia  encontrar  a  esposa, mas  não  podia morrer  de  fome  nas montanhas. Sacudiu a cabeça, pôs no ombro a espingarda enferrujada e, com o coração cheio de
preocupação e ansiedade, dirigiu seus passos para casa.
 Ao  se  aproximar  da  aldeia,  encontrou  algumas  pessoas, mas nenhuma conhecida, o que o surpreendeu um bocado, pois achava que  conhecia  todos  na  região.  Também  suas  roupas  eram  de  um tipo  diferente  daquele  com  o  qual  ele  estava  acostumado.  Todos olhavam  fixamente  para  ele, com  os mesmos  sinais  de  espanto,  e coçavam o  queixo. A  repetição constante desse  gesto levou Rip a fazer involuntariamente o mesmo e  foi quando, para sua surpresa, descobriu que sua barba tinha crescido um pé!
 Agora,  tinha  chegado  aos  limites  da  aldeia.  Um  grupo  de crianças desconhecidas correu atrás dele, gritando e apontando sua barba  grisalha.  Também  os  cães,  que  ele  não reconheceu, latiam para ele à sua passagem. Toda a aldeia tinha mudado. Estava maior e mais povoada. Havia  fileiras de casas que ele jamais tinha visto antes  e  as  que  lhe  eram  familiares  tinham desaparecido.  Havia nomes  desconhecidos  sobre  as  portas,  rostos  desconhecidos  às janelas;  tudo  era  desconhecido.  Duvidava  do  seu  próprio  juízo; começou a achar que talvez ele e o mundo a sua volta estivessem enfeitiçados. Certamente esta era  sua aldeia natal, que ele deixara
na  véspera.  Ali  se  erguiam  as  montanhas  Kaatskill,  ali  corria  o prateado  Hudson.  Rip estava  dolorosamente  perplexo.  “Aquele garrafão  de  ontem  à  noite”,  pensou,  “perturbou  a  minha  pobre cabecinha!”
Foi  com  alguma  dificuldade  que  encontrou  o  caminho  para sua casa, da qual ele se aproximou com medo silencioso, esperando a  cada  momento  ouvir  a  voz  estridente  da  Senhora  Van Winkle.
Encontrou a casa em ruínas: o teto caído, as janelas arrebentadas e as portas fora das dobradiças. Um cão meio morto de fome, que se parecia com Wolf, vagava por ali. Rip chamou-lhe pelo nome, mas o vira-lata  rosnou,  mostrou  os  dentes  e  foi  embora.  “Até  o  meu próprio cachorro”, suspirou o pobre Rip, “esqueceu-se de mim!”
Entrou na casa. Estava vazia e, segundo parecia, abandonada.
Chamou em voz alta pela esposa e filhos — os aposentos desertos ressoaram com sua voz por um momento e, então, tudo voltou ao silêncio de antes.
Correu para o seu velho  refúgio, a pousada da aldeia — mas ela  também  tinha desaparecido.  Estava  em  seu  lugar  uma construção  de  janelas  largas,  sobre  cuja  porta  estava  pintado:
“Hotel União,  de  Jonathan Doolittle”. Ao invés  da  grande  árvore que  costumava  proteger  a  calma  pousada  holandesa,  havia  um mastro com uma bandeira; nela, uma estranha mistura de estrelas e listras — tudo isso era incompreensível e estranho.
Havia, como sempre, uma multidão de pessoas perto da porta, mas nenhuma que Rip reconhecesse. Até o caráter do povo parecia mudado. Ao invés da calma habitual, as pessoas eram apressadas e agitadas. Procurou em vão pelo sábio Nicholas Vedder ou por Van
Bummel, o mestre-escola.
Rip, com  sua longa barba grisalha, sua espingarda enferrujada, sua  roupa grosseira logo atraiu a atenção dos homens do  hotel.  Cercaram-no,  olhando-o  dos  pés  à  cabeça  com  grande curiosidade. Perguntaram em quem ele tinha votado. Rip arregalou os  olhos,  sem  entender  nada.  Um  homem  puxou-o  pelo  braço  e perguntou  se  ele era  federalista  ou  democrata. Rip  não  conseguia entender  a  pergunta.  Por  fim  um  velho  lhe  perguntou,  em  tom grave, o que ele fazia numa eleição com uma arma ao ombro e uma multidão  a  segui-lo  e  se  ele  queria liderar  uma  revolta  na  aldeia.
“Ai!, senhores”, exclamou Rip, “eu sou um pobre coitado, pacífico, natural  deste lugar”. E  o  pobre  homem assegurou,  humildemente, que  não  pretendia  armar  confusão  mas  que  viera  ali  apenas  para procurar  alguns  dos  seus  vizinhos,  que  costumavam  reunir-se
naquele lugar.
“Bem,  quem  são  eles?”,  ouviu-se  perguntar,  “Diga  seus nomes”.
Rip pensou por um momento e indagou: “Onde está Nicholas Vedder?”
Houve silêncio por um instante, até que um velho respondeu: “Nicholas Vedder? Está morto e enterrado há dezoito anos! Havia uma lápide  de madeira,  no cemitério,  que contava tudo  sobre ele, mas apodreceu e sumiu”.
“Onde está Brom Dutcher?”
“Oh,  alistou-se  no  exército,  logo  no  começo  da  guerra;  uns dizem que ele morreu em combate, outros que se afogou. Não sei, ele nunca mais voltou”.
“Onde está Van Bummel, o mestre-escola?”
“Alistou-se  também,  foi  um  grande  general  e  agora  está  no Congresso”.
O coração de Rip se partiu ao ouvir essas tristes mudanças e ao ver-se assim, sozinho no mundo. Cada resposta o confundia, em se tratando  de tão  grandes lapsos  de tempo e  de  assuntos  que  ele não  conseguia  entender.  Não  tinha  coragem  de  perguntar  por outros  amigos,  mas  gritou  desesperado:  “Ninguém  aqui  conhece Rip Van Winkle?”
“Oh, Rip Van Winkle!”, exclamaram dois ou três, “Oh, claro!
Aquele ali, encostado na árvore, é Rip Van Winkle”.
Rip olhou e avistou uma réplica exata de si mesmo no tempo em  que  ele  subiu  a  montanha.  O  pobre  coitado  estava  agora completamente confuso. Duvidava  de  sua  própria identidade,  sem
saber  se  era  ele  mesmo  ou  um  outro  qualquer.  Em  meio  a  esse embaraço, perguntaram-lhe quem ele era e qual era seu nome.
“Só  Deus  sabe”,  exclamou.”  Não  sou  eu  mesmo...  sou  uma outra pessoa...aquele ali é que sou eu...não... alguém tomou o meu lugar...  Eu  era  eu  mesmo  a  noite  passada,  mas  adormeci  na montanha  e  mudaram  minha  espingarda  e  tudo  mudou,  e  eu mudei, e não sei dizer qual o meu nome ou quem sou eu!”
Os que estavam presentes começaram então a olhar um para o outro, balançavam a cabeça, piscavam os olhos e passavam o dedo pela testa  para  dar  a  entender  que  o  homem  estava  doido.  Nesse momento,  uma  bela  mulher  abriu  caminho  na  multidão  para  dar
uma  olhada  no  velho  de  barba  grisalha.  Trazia  nos  braços  uma criança  gorducha,  que,  assustada  com  o  olhar  de Rip,  começou  a chorar. “Quieto, Rip”, gritou ela, “quieto, seu bobinho; o velho não vai machucar você”. O nome da criança, a aparência da mãe, o tom
de sua voz, tudo despertava um monte de recordações na mente de Rip. “Qual é o seu nome, minha boa mulher?”, perguntou.
“Judith Gardiner”.
“E o nome do seu pai?”
“Ah,  pobre  homem, Rip Van Winkle  era  seu  nome, mas  faz vinte anos que ele saiu de casa com sua espingarda e nunca mais se ouviu  falar  dele...  Seu  cachorro  voltou  para  casa  sozinho, mas  se ele  se matou  ou  se  os índios  o  raptaram,  ninguém  pode  dizer. Na
época, eu era uma garotinha”.
Rip só tinha mais uma pergunta a fazer, mas a fez com a voz tremendo:
“Onde está sua mãe?”
“Oh, ela também morreu, mas há pouco tempo;  rebentou um vaso  sangüíneo  num  acesso  de  cólera  contra  um  vendedor ambulante”.
Havia  naquilo  uma  ponta  de  consolo.  Não  pôde  se  conter mais.  Abraçou  sua  filha  e  o  filho  dela.  “Sou  seu  pai!”,  gritou.
“Jovem  Rip  Van  Winkle,  em  outros  tempos...velho  Rip  Van
Winkle, agora!...Ninguém reconhece o pobre Rip Van Winkle?”
Todos  ficaram  admirados,  até  que  uma  velha,  destacando-se da  multidão,  colocou  sua  mão  na  sobrancelha  e,  olhando atentamente para o rosto de Rip por um momento, exclamou: “Não
resta dúvida! É Rip Van Winkle... é ele mesmo! Bem-vindo em sua volta para casa, velho vizinho. Mas onde você esteve nesses vinte longos anos?”
A história de Rip  foi narrada brevemente, pois os vinte anos tinham sido para ele apenas uma única noite. Os vizinhos  ficaram espantados  ao  ouvi-la.  Viram-se  alguns  piscarem  o  olho  e  fazer sinal de que achavam o homem louco.
Decidiu-se, porém, ouvir a opinião do velho Peter Vanderdonk. Era o mais antigo morador da aldeia e conhecedor de todos os acontecimentos extraordinários da redondeza. Reconheceu
Rip  imediatamente  e  confirmou  sua  história  da  maneira  mais satisfatória. Assegurou  ao  grupo  que  era  fato  estabelecido  que  as montanhas  Kaatskill  eram  freqüentadas  por  seres  estranhos.  Seu pai  os  tinha  visto  uma  vez,  em  seus  antigos  trajes  holandeses, jogando  bola  numa  cavidade  da  montanha.  Ele  próprio  havia ouvido,  numa tarde  de  verão,  o  som  de  suas  bolas, como  barulho remoto de trovão.
Para encurtar a história, o grupo se desfez e voltou a cuidar de algo mais importante, a eleição. A filha de Rip o levou para morar em sua casa confortável e bem mobiliada junto com ela e o marido.
Rip lembrou  que ele era  um  dos meninos  que costumavam trepar às  suas  costas.  Quanto  ao  filho  e  herdeiro  de  Rip,  que  era  a  sua imagem,  trabalhava  na  fazenda,  mas  revelava  uma  tendência hereditária a só fazer o que lhe interessava.
Rip agora retomava seus velhos hábitos. Encontrou muitos de seus  antigos  companheiros, mas todos tinham  sofrido  os  estragos da passagem do tempo. Preferia fazer amigos entre a nova geração, entre a qual se tornou logo muito popular.
Sem  nada  para  fazer  em  casa  e tendo  chegado àquela idade feliz em que um homem pode ser preguiçoso impunemente, tomou lugar  mais  uma  vez  no  banco  junto  à  porta  da  pousada  e  era reverenciado como um dos patriarcas da aldeia. Levou tempo para conseguir  conversar  normalmente  ou  compreender  os  estranhos acontecimentos  que  tinham  ocorrido  durante  seu  sono.  Tinha havido uma guerra revolucionária, o país se libertara da Inglaterra e agora ele era um cidadão livre dos Estados Unidos. Na verdade, Rip  não  se  interessava  por  política;  as  mudanças  de  estados  e impérios  pouco  o  impressionavam;  mas  havia  uma  espécie  de tirania sob a qual ele sofrera muito tempo, a feminina. Felizmente chegara ao  fim; livrara  o  pescoço  do jugo  do matrimônio e  podia entrar  e  sair  quando  lhe  desse  na  telha,  sem  temer  a  tirania  da Senhora  Van  Rinkle.  Sempre  que  seu  nome  era  mencionado, porém, ele sacudia a cabeça, encolhia os ombros e erguia os olhos, o que podia passar por uma expressão de  designação para com seu destino ou alegria por sua liberdade.
Rip  costumava  contar  sua  história  a  todo  estrangeiro  que chegava  ao  hotel  do Senhor.Doolittle. Viam-no, de início, alterar certos detalhes cada vez que a contava, o que se devia, sem dúvida, ao  fato  de ter  despertado  há tão  pouco tempo. Mas, finalmente, a narrativa  fixou-se  exatamente  nos  moldes  em  que  a  narrei,  e nenhum  homem,  mulher  ou  criança  da redondeza  deixava  de  a saber  de  cor.  Alguns sempre duvidavam de sua veracidade e insistiam  em  que Rip tinha  perdido  o juízo. Os velhos habitantes holandeses, porém, acreditavam, quase todos, nela. Ainda nos dias de hoje, jamais ouvem uma trovoada numa tarde   de   verão   sobre o Kaatskill sem dizer que aquele grupo de homens estranhos estão jogando bola. E é um desejo comum a todos os maridos tiranizados pela esposa, na redondeza, quando a vida  se  torna  um  fardo,  poderem  beber  um  gole  repousante  do garrafão de Rip Van Winkle.

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